No dia 28 de março, a Folha de S. Paulo publicou, em sua capa, uma fotografia de Joedson Alves que mostra o rosto do presidente Jair Bolsonaro em close, mostrando perdigotos expelidos por sua boca durante uma fala (Imagem 1). Na legenda, diz-se que essas gotículas são uma forma de transmissão do coronavírus e, por isso, um dos principais motivos da defesa do distanciamento social, criticado pelo próprio presidente. A fotografia em questão, que viralizou, traz à tona um questionamento a respeito do modo como são feitas e visualizadas as imagens do fotojornalismo.

Imagem 1: Fotografia de Joedson Alves

Esse questionamento diz respeito ao fato de o fotojornalismo historicamente ter se ancorado em um apagamento da ação do fotógrafo para causar a ilusão de que aquela imagem foi produzida de modo natural, sem grandes intencionalidades (MACHADO,2015; SCHNEIDER, 2017). A fotografia aqui analisada escancara a tanto impossibilidade de se fazer fotografia e, de modo mais específico, fotojornalismo sem a ação direta da intencionalidade do fotógrafo sobre a imagem resultante quanto a criação de uma narrativa através da fotografia, que não apenas mostra o momento em que os perdigotos são expelidos, mas, com o apoio da legenda, explica ao leitor por que se deve usar máscara e evitar o contato próximo com outras pessoas.


Para retratar os perdigotos saindo da boca do presidente, o fotógrafo fez uma série de escolhas conscientes seja de equipamento (a teleobjetiva utilizada para mostrar o rosto do presidente de forma bem próxima), de ângulo (é indispensável que haja um fundo que contraste com a cor das gotículas, no caso, o assessor que aparece ao lado do presidente na imagem) ou de iluminação (sem ação da luz direta sobre as gotículas, elas não aparecem na imagem).

Esse escancaramento da necessidade de ação direta sobre a construção da imagem acontece principalmente por conta da impossibilidade de se registrar, com um equipamento fotográfico comum, de forma direta o vírus, já que este não é visível a olho nu, além da doença e da pandemia, substantivos abstratos. Para além desta imagem específica, o fotojornalismo tem-se utilizado de fotografias de hospitais e leitos, para falar da doença; de espaços vazios, para mostrar o isolamento social e da quarentena; de aglomerações e pessoas sem máscara, para mostrar os perigos da contaminação; entre muitos outros. O fotojornalismo se utiliza de códigos sociais imagéticos trabalhados na mídia para tratar de um fenômeno abstrato. É muito diferente de uma fotografia de um acidente de trânsito, por exemplo, em que há um aspecto visual muito concreto e o fotógrafo consegue causar essa ilusão de neutralidade. Obviamente nesses casos também há ação consciente do fotógrafo sobre o que vai entrar ou não na imagem de acordo com sua agência e da agência do veículo em que deseja publicar essa imagem (FLUSSER, 1985), como em toda e qualquer fotografia jornalística, mas essa intencionalidade busca se esconder em ângulos ditos neutros e que reforcem clichês imagéticos já compartilhados pela sociedade (MACHADO, 2015).

No caso específico das imagens da pandemia de covid-19, é interessante notarmos que até a imagem do próprio vírus, no momento exato em que infecta uma célula saudável, publicada também pela Folha, dessa vez na capa de 09 de abril, também denota a agência do fotógrafo sobre a imagem. A fotografia em preto e branco e com pouca nitidez só foi possível de ser gerada a partir de um equipamento específico que capte imagens microscópicas (Imagem 2). Para além disso, essa imagem também necessita de uma legenda que lhe atribua sentido, já que, para o olho não acostumado aos códigos imagéticos das fotografias microscópicas, a imagem do próprio vírus diz muito menos sobre a doença do que a imagem dos perdigotos do presidente, por exemplo.

Imagem 2: Imagem feita pela Fiocruz

Obviamente, não existe fotojornalismo sem legenda, já que a fotografia é polissêmica e a legenda atribuída a determinada fotografia numa página de jornal ajuda a direcionar a atenção do leitor para o sentido específico que o jornal quer dar àquela imagem. Na capa do dia 30 de março, a Folha publicou uma imagem de um ponto de ônibus vazio na Av. Paulista, uma das mais movimentadas da cidade de São Paulo. Porém, se publicada sem legenda, essa fotografia não teria o contexto específico da cidade esvaziada por conta do isolamento social. Poderia apenas ser o retrato de um centésimo de segundo na madrugada da cidade, por mais que outros locais da avenida não estivessem vazios.

Imagem 3: Fotografia de Gabriel Cabral

As imagens da pandemia – a partir da explicitação de que não há como fazer uma imagem neutra, sem ação direta do fotógrafo, suas agências e as agências do veículo em que este quer publicar sua imagem (já que há uma seleção do que vai ou não ser publicado e onde) e de que não há fotojornalismo que seja apenas imagem, sem texto atrelado (SOUSA, 2004) – escancaram também a necessidade de mudar o olhar sobre esse tipo de fotografia, assim como descrito por Schneider em seu artigo intitulado Por uma abordagem narrativa do fotojornalismo: “Uma das alternativas para repensar o fotojornalismo reside na valorização da narratividade e na pluralidade de imagens. É necessário discutir o agenciamento narrativo de fotos” (SCHNEIDER, 2015, p. 55). É criando narrativas imagéticas, portanto, que o fotojornalismo vem transmitindo informações sobre a covid-19, o que fazer para se previnir e como a pandemia está sendo combatida. Sem esse agenciamento narrativo, a eficiência de transmissão de informação, característica imprescindível a uma boa fotografia jornalística (GURAN, 1992), seria imensamente prejudicada.

REFERÊNCIAS

FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Hucitec, 1985.

GURAN, Milton. Linguagem fotográfica e informação. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1992.

MACHADO, Arlindo. A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo Gili, [1984] 2015.

SCHNEIDER, Greice. Por uma abordagem narrativa do fotojornalismo. In: FRANCISCATO, Carlos Eduardo; GUERRA, Josenildo Luiz; FRANÇA, Lilian Cristina Monteiro (org.). Jornalismo e tecnologias digitais: produção, qualidade e participação. São Cristóvão: Editora UFS, 2015.

SOUSA, Jorge Pedro. Fotojornalismo: introdução à história, às técnicas e à linguagem da fotografia na imprensa. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2004.