Por Raíza Tourinho
Essa semana fez três meses que vim fazer doutorado sanduíche em Londres. Confesso que, por minha pesquisa não ter relação direta com o país, tive dúvidas de quão essencial para concluir minha tese seria vir para o Reino Unido. Tinha a experiência cultural, possibilidades de conhecer novas iniciativas e abordagens, certo. Mas sem necessariamente ter aulas regulares ou pesquisa de campo, era tudo muito difuso ainda para mim. Talvez até Perugia.
Na segunda semana de abril, participei do XIX International Journalism Festival, um dos maiores eventos de jornalismo do mundo, que ocorre anualmente em Perugia, na Itália. Mesmo sem grana (difícil viver em libras), com toda a programação disponível ao vivo pela internet e ainda sem mesas diretamente relacionadas ao meu tema de pesquisa (cadê o jornalismo de ciência em Perugia? #ficaadica), achei que valia a pena quebrar o cofrinho para aproveitar a oportunidade de estar na Europa e simplesmente pegar um voo a baixo custo para ver de perto o festival. E valeu.
Se tem uma coisa que eu, enquanto pesquisadora em formação, acho fundamental é a Academia estar sempre conectada com quem atua na profissão. Os eventos profissionais são uma grande chance de compreender quais são os temas mais em voga na comunidade jornalística atualmente, os principais desafios e como lidar com eles. E Perugia foi uma excelente oportunidade para isso.
Londres é uma cidade multicultural e somente andar pelas ruas significa ter contatos com outros jeitos de ser e viver no mundo, escutar idiomas diversos, descobrir novos códigos culturais. O festival de Perugia foi para mim como se estivesse em uma “Londres dos jornalistas”, em meio a um estonteante cenário medieval, com uma pegada de interior de filme e nativos extremamente acolhedores. Um amor.
Além disso, não tem maratona de youtube que se compare a assistir de perto a discussões relevantes com jornalistas das mais diversas perspectivas. Os painelistas vinham de todos os cantos: desde veículos globais, como The NY Times, The Guardian, Reuters ou Al Jazeera; pesquisadores de universidades; profissionais de institutos de apoio ao jornalismo; freelancers, passando por até mesmo integrantes de redações nativos digitais de países diversos, como Rappler (Filipinas), Ouestaf News (Senegal) ou ainda o brasileiro Amazônia Vox. Uma programação intensa de cinco dias digna do nome Festival.
De forma geral, alguns temas se repetiram: como lidar com IA e as plataformas? Como cobrir com a necessária urgência as alterações climáticas? O que vai acontecer no mundo pós-Trump 2? Mas o festival foi além, com discussões sobre o presente e o futuro dos vários jeitos de fazer jornalismo que existem por aí. Para compreender do que estou falando, vale dar uma olhada na programação do festival em si, e nas coberturas feitas pela Reuters Institute, IJNET e, é claro, pela newsletter do Farol Jornalismo, a melhor compilação em português de tudo isso.
Mas, como você já deve ter percebido até aqui, esse post apenas relata a minha experiência pessoal no evento e as minhas mesas favoritas (daqueles que realmente saí com a sensação de que tinha ampliado minha perspectiva de mundo ou que consegui articular os conhecimentos que “já tinha”, mas não haviam sido colocados “daquele jeito”). No total, participei de dois dias e meio de evento, 17 mesas, e ainda aproveitei para pegar contatos e almoçar com possíveis entrevistados da tese (para não dizer que a produtividade acadêmica foi difusa).
Listarei a seguir as cinco discussões mais interessantes que escutei por lá (e, o melhor, todas com a íntegra disponível no youtube):
- O futuro não é mais como era antigamente. Precisei pegar emprestado a frase de Renato Russo para traduzir a sensação que deu em uma das mesas mais “assustadoras” do festival. Um dos “whistleblowers” mais famosos do mundo, Christopher Wylie, que denunciou como a Cambridge Analytica coletava dados para apoiar a manipulação política no Facebook, foi o principal nome da mesa “Captured: como os imperadores da Inteligência Artificial do Silicon Valley estão remodelando a realidade” (em tradução livre, como todas as outras a seguir). Na mesa, Wylie (que apresenta um audiobook homônimo na Audible, que super recomendo), alertou que a ideologia de Silicon Valley é como se fosse uma seita fascista, como eles a utilizam para programar a inteligência artificial, e como não estamos levando suficientemente a sério a volta do fascismo. “AI não é a questão. A tecnologia não é a questão. É o movimento fascista. Um bando de homem branco rico moldando o futuro”, falou, e complementou que nem a regulação das plataformas é enfrentamento suficiente: “Como regular Mussolini?!”. Wylie defende que, enquanto o jornalismo está debatendo como salvar a democracia, os imperadores de Silicon Valley já estão construindo o mundo pós-democrático.
- “O marco da mídia é a verdade, não é a objetividade nem a neutralidade”. Esse argumento, do jornalista da Al Jazeera Media Institute Ahmad Abu, foi um dos dilemas revisitados durante a mesa “O que o jornalismo precisa mudar para atender as necessidades do Sul Global”. Essa foi a primeiríssima mesa que assisti e saí com a sensação de que o evento já tinha valido a pena só por ela. Complementado pela pesquisadora Yafa El Masri e pelo também integrante do instituto Montaser Marai, os painelistas tocaram em temas como a mídia tem sido imperialista, como o Sul Global é representado pelas lentes do Norte, a necessidade de descolonizar nossas reportagens, o viés inerente a qualquer produção humana e a concentração digital e de plataformas, que se tornaram autoridades em si mesmas. Temos que passar de “reportar o que aconteceu” para o “porquê aconteceu, quem é o culpado?”, defenderam. Esse é o equilíbrio necessário para o jornalismo cumprir seu papel no Sul Global.
- De todas as mesas que assisti, a que mais me surpreendeu foi a “Confiança Quebrada: hora de abandonar uma métrica manipulada”. Tá, não sou especialista em confiança jornalística, mas confesso que nunca questionei verdadeiramente a narrativa de que a confiança da sociedade no jornalismo está caindo. Afinal, estamos em um mundo repleto de notícias superficiais, desinformação e negacionismo espalhados aos quatro cantos pelas plataformas digitais. Sem contar que o mundo contado pelos jornalistas não é mesmo o mais diverso (e, portanto, usualmente está distante da maior parte da população). Mas vem então uma mesa com quatro jornalistas altamente renomadas, que inclusive participaram da construção de relatórios sobre confiança jornalística, e falam “peraí, o quanto dessa narrativa é verdadeira? A quem interessa que o jornalismo esteja com a confiança em baixa? Como isso é medido?”. Elas contam como a informação confiável está sendo estrategicamente descredibilizada pelas grandes plataformas, responsáveis pela maior parte da distribuição de notícias. A jornalista filipina Maria Ressa resume: “Nós estamos sob ataque”.
- Em falar de ataque, quem conhece bem como construir resiliência em contextos adversos são as comunidades afro-diaspóricas. Na mesa “Eu sou preta/o suficiente para você? Reimaginando cobertura de raça e identidade na era global da retaliação”, o que poderia parecer um debate nichado trouxe à tona muitas das questões que atravessam a necessidade da reinvenção do jornalismo como um todo. No debate, os jornalistas trouxeram como a mídia identitária foi construída (a partir do ativismo) e como isso molda as narrativas criadas pelo jornalismo de raça, mas também como isso pode ser reapropriado pela mídia em geral. “Objetividade é um mito. Todo mundo vem de algum contexto. Nós temos que ser honestos com nós mesmos” argumentou Sara Lomax, cofundadora da URL Media (EUA). A mediadora da mesa, a jornalista caucasiana Natalia Antelava, trouxe a vivência dela enquanto pessoa branca oriunda de uma região oprimida e que é vista como dominante e opressora nos Estados Unidos, onde vive. Ela argumentou como os povos oprimidos devem se conectar, criar novas alianças para resistir juntos, para além da cor da pele. “Somos todos niggas agora”, complementou Martin Reynolds, sobre como o segundo governo Trump têm ampliado a parcela da população que vive sob opressão. “Bem-vindos, resto do mundo”.
- E em um cenário tão adverso para o jornalismo (e para o mundo), como sair do “mais do mesmo” e criar produções que gerem impacto social? Algumas das estratégias utilizadas ao redor do mundo para elaborar e medir produções por suas consequências na sociedade foram discutidas na mesa “O que é o impacto do jornalismo e como medi-lo?”. O painel trouxe as experiências do El Surtidor (Paraguai), Pulitzer Center, europeia Lighthouse, e da brasileira Agência Pública. “Conteúdo sozinho não gera mudança. Nós temos que ser intencionais sobre o impacto”, explicaram os integrantes da mesa. A jornalista Jazmin Acuna explicou que no El Surtidor, por exemplo, eles mensuram o impacto de suas produções em cinco etapas: 1) conscientização; 2) ampliação e endosso; 3) organização de base; 4) responsabilização; 5) mudança sistêmica. Para colocar em prática, algumas perguntas orientadoras que podem ajudar: “Eu posso fazer alguma diferença? O que eu posso fazer sobre isso?”, explicou a jornalista Flora pereira, do Pulitzer Center. Vale assistir à mesa na íntegra, mas já adianto que algumas das experiências mostradas no painel também fazem parte do minicurso que ministro virtualmente na próxima semana, no evento dos 30 anos do Jornalismo Digital promovido pelo Gjol. Te espero lá!
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